O tempo leva tudo embora de diversas maneiras.
Que haja lucidez; lucidez para enxergar os presentes que recebemos e poucas vezes enxergamos.
Lucidez para valorizar o que nos pertence de fato.
Lucidez para aceitar o fim de um tempo e o começo de outro
Lucidez para amar e ser amado.
Lucidez para permitir que o amor salve nossas vidas.
+292-073
muita paz
Certa vez ouvi o relato de um palestrante sobre a visita de um amigo a uma tribo indígena cuja cultura não considera o tempo futuro.
Diante da incerteza, a tribo vive cada momento presente com muita intensidade e o passado com gratidão. Recebem os visitantes com alegria e festa e, ao se despedirem, fazem-no como se fosse a última vez que se verão.
Esta lembrança me veio ao coração e à mente ao ler o texto proposto para hoje, o ducentésimo nonagésimo segundo deste ano.
Por que "recebemos e poucas vezes enxergamos os presentes que recebemos"?
Imediatamente penso que tudo é uma questão de perspectiva. Conforme o ponto de vista, nossas escalas de valores atribuem importância para aquilo que recebemos.
Pensando no futuro em um mundo onde a escassez é regra e a finitude algo inevitável, nós nos especializamos em olhar do presente para o passado avaliando desperdícios.
Do ponto de vista de máxima eficiência e considerando o que sabemos hoje, mas que não sabíamos no passado, definimos o que deveríamos ter feito para evitar todo o desperdício e, assim, facilitar o futuro que desejamos a partir do presente que vivemos.
E se esquecêssemos o futuro com sua certeza de finitude e de escassez de recursos? Se olhássemos para o passado reconhecendo a importância dele para o momento presente que vivemos hoje?
Quando conseguimos reconhecer o passado como um momento grandioso e importante que nos define hoje, considerando que não podemos voltar para fazer diferente do que foi feito, talvez consigamos honrar mais do que criticar e lamentar. Talvez a gratidão ecloda porque fomos capazes de compreender a interrelação entre o que somos e o que fomos.
Deixamos de ter que praticar a aceitação dos erros porque não estamos mais presos ao que poderia ter sido e não foi.
As raivas, as mágoas, os ódios e as tristezas podem ganhar menos importância em nossas vidas; o que abriria espaço para vivermos com maior fluidez, esperança e alegria.
Talvez a repetição constante da palavra lucidez tenha provocado este pensamento! Ela nos fala de algo que se manifesta com luz, com clareza. Mas, clareza para quem? A partir de que ponto de vista?
Ausência ou presença de luz talvez não signifique nada para alguém que não seja capaz de ver.
A presença de luzes pode atrapalhar o observador das estrelas.
A ausência de luz pode impedir a caminhada rumo a algum destino em meio a caminho desconhecido.
A presença de luz com foco em uma região deixa o resto na escuridão, permitindo conceituarmos um faixo de luz.
A ausência de luz pode aguçar outros sentidos e habilidades.
Penso nisso porque talvez não possamos falar em lucidez no singular. Talvez existam diversas "lucidezes", várias formas de olhar para uma mesma sequência de acontecimentos e extrair significados.
Em que discordamos da lucidez de nossos antepassados? Que transformações sofremos no tempo para discordarmos hoje de nós mesmos no passado?
Estas perguntas podem nos levar ao autoconhecimento, à melhoria de nossa capacidade de metacognição, ou seja, à nossa capacidade de monitorar e autorregular os processos cognitivos no presente.
Eu diria que as maiores "lucidezes" que podemos ter são a percepção da liberdade que temos no presente para aprender com o passado e esperançar o futuro; e a permissão para seguir com a certeza que todo momento é passageiro e limitado à nossa capacidade cognitiva atual.
Somos a consequência do passado, uma das possíveis construções que estavam disponíveis à época. A cada instante somos convocados a fazer escolhas, o que ocorre com base na visão presente do que aconteceu no passado.
Talvez estejamos vendo com muita lucidez a realidade e não precisemos de mais lucides, mas sim de abertura, gratidão e confiança em nós mesmos. Provavelmente enxergamos bem os presentes que recebemos, talvez só não sejamos capazes de ver todo o potencial destes presentes, o que se dá porque somos incapazes de perceber o que desconhecemos.
Receber e não enxergar talvez seja consequência natural de nosso desconhecimento...
Descobrir potenciais não percebidos é função do futuro, quando acessamos a narrativa do que ocorreu na linha do tempo e estabelecemos relações de causa e efeito.
É preciso arriscar, atrever-se a errar e desperdiçar, para reconhecer futuramente os potenciais não vistos. Mas este reconhecimento só é útil para quem está no futuro.
Cabe a nós reconhecermos que nossa lucidez é diferente da lucidez do passado, quando as decisões foram tomadas.
Entender que só pudemos desenvolver nosso entendimento porque pessoas do passado se arriscaram a ser autênticas e coerentes com a lucidez que possuíam, nos convoca à gratidão com o passado e à autenticidade no presente.
Talvez hoje, já consigamos perceber que o que tivemos no passado não é passível de ser objeto de propriedade hoje. Assim podemos fundamentar melhor o conceito atual de posse e propriedade.
Talvez os fins de ciclo só possam surgir quando somos capazes de reconhecer a diferença entre o que é hoje e o que foi ontem. Assim, é caminho iniciarmos um novo ciclo antes de reconhecermos o fim do ciclo anteriormente vivido.
Reconhecendo o cuidado relacional no passado, nos habilitamos a amar de forma mais elaborada no presente.
Perdendo vidas, nos habilitamos a reconhecer o valor delas e os meios de honrá-las, mas também conseguimos definir novos acordos quanto ao que é estar salvo ou perder-se.
E assim, passamos a viver através do tempo e não no tempo. Passamos a existir pelos valores pontuais que construímos no presente, honrando o passado e deixando legados para que o futuro viva como presente autêntico e livre.
Certa vez ouvi o relato de um palestrante sobre a visita de um amigo a uma tribo indígena cuja cultura não considera o tempo futuro.
Diante da incerteza, a tribo vive cada momento presente com muita intensidade e o passado com gratidão. Recebem os visitantes com alegria e festa e, ao se despedirem, fazem-no como se fosse a última vez que se verão.
Esta lembrança me veio ao coração e à mente ao ler o texto proposto para hoje, o ducentésimo nonagésimo segundo deste ano.
Por que "recebemos e poucas vezes enxergamos os presentes que recebemos"?