• O Dilema do Altruísmo: Cuidar dos Outros sem Perder a Si Mesmo

    339/2024 - Cuidar Sem Se Perder
    339 - 2024 (04/12/2024)
    Mensagem

    Quem cuida muito da vida alheia está cuidando pouco da sua, o que é lamentável, porque há tanto trabalho interior a se realizar na busca do nosso aperfeiçoamento, que não sobraria tempo para vigiar a conduta do  próximo.
    +339-027
    muita paz

    Reflexão

    Acredito que nossas vidas se misturam, que é impossível olharmos para nossas existências sem considerarmos as relações que estabelecemos com outras existências. Que seria de um filho se os pais não cuidassem de sua vida? Que seria das pessoas doentes e das senis se outros humanos não cuidassem das vidas delas? Que seria da vida em sociedade se policiais, fiscais e juízes não cuidassem da vida dos outros cidadãos? Que seria da transmissão de nossa cultura se não contássemos com orientadores, professores e tutores para cuidar da vida dos alunos?

    Penso que o cuidado faz parte da definição de quem somos: seres vivos interdependentes, emocionais, com habilidades de raciocínio e grande necessidade de sentido de pertencimento, de propósito e de autonomia. 

    Talvez seja impossível não cuidarmos das vidas uns dos outros. Talvez nosso projeto biológico não contemple a possibilidade de não sermos cuidados pelo outro em algum nível de nossas existências, para exemplificar, podemos pensar nos extremos da vida humana. Um bebê humano depende de seus pais e grupamento familiar por muitos anos até ser capaz de viver com maior autonomia, ao contrário de outras espécies animais. No outro extremo da experiência humana, aumentamos a expectativa de vida, mas criamos necessidades de atenção específicas e muito demandantes para acolher os últimos anos de vida de milhares de pessoas que perdem a capacidade de manter-se de forma autônoma e independente.

    Há tribos de povos originários no Brasil que dizem que é necessária uma aldeia inteira para cuidar de uma criança, sabedoria ancestral que reitera o pensamento da necessidade de cuidarmos uns dos outros em nossas jornadas existenciais.

    Há, entretanto, um contexto patológico que penso ser o apontado nesta citação. Vemos contextos em que uma pessoa passa a viver através da vida da outra. Pais, cuidadores, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, policiais, fiscais, juízes, professores, coaches e tutores que confundem suas identidades com as funções que desempenham. Dedicam a vida ao outro, mas se esquecem de si.

    O que nos levará a tais distorções de entendimento?

    Acho que são muitas as possibilidades, mas é provável que todas elas passem por traumas, inseguranças, medos, baixa autoestima e modelos de educação. 

    Crescemos aprendendo a reconhecer e a enunciar o que queremos ser quando crescermos, como se não fôssemos nada ou como se o que somos não fosse importante. Nos projetamos no futuro, no que não somos, mas que poderemos ser.

    Aprendemos a reconhecer e a venerar ídolos e referências. Enaltecemos os outros e nos educamos para mimetizar estes outros. Imitamos formas de falar e de vestir, queremos ter e ser o que nossos ídolos são. Talvez acabemos esquecendo quem somos e o valor de sê-lo.

    Olhamos para nossas vidas e identificamos faltas, defeitos, incompletudes e imperfeições; fomos treinados para isso. Lamentamos o que somos e sonhamos com o que pode ser, visto através dos exemplos à nossa volta. Sinto que, de alguma forma, nos perdemos de nós mesmos no processo.

    Em paralelo, o pensamento religioso ocidental nos levou a valorizar com intensidade a ideia do ofício sagrado de servir e apoiar o outro a qualquer custo, o que nos convida a sacrifícios pessoais em favor do outro. Transformamos grandes nomes como Ghandi Martin Luther King, Madre Tereza de Calcutá, Nelson Mandela e Jesus em mártires. Enaltecemos suas vidas como exemplos importantes de condutas a serem seguidas. Suas histórias são contadas para enaltecer o esquecimento de nós mesmos em favor de causas humanitárias maiores que podem até mesmo arrebatarem nossas vidas.

    Vemos o baixo reconhecimento profissional de professores, mas enaltecemos a coragem e a dedicação do sacrifício deles. Será que este desejo de vivermos entre mártires faz com que não nos empenhemos em melhorar as condições de trabalho e a remuneração deles? Apontamos para o sacerdócio do ensino, mas não facilitamos as condições de trabalho. 

    Vemos profissionais de saúde estafados, levados a condições extremas de trabalho e veneramos o sacrifício que realizam, mas não facilitamos o exercício da medicina e continuamos exigindo muito deles e dificultando o processo formativo profissional. 

    Veneramos aqueles que trabalham muito por uma causa, mas ignoramos que muitas vezes estas pessoas estão plantando adoecimento em si e na sociedade com as práticas de esquecimento de si mesmas.

    Acredito que tenhamos interiorizado de tal forma o esquecimento de nós mesmos em favor do outro que se torna cada vez mais fácil conhecermos pessoas frágeis, que lutam para cuidar do outro como caminho de reconhecimento e de geração de estima.

    Talvez estejamos trocando nossa saúde e o cuidado pessoal por reconhecimento ao nos dedicarmos ao outro. Entretanto, acredito que, se você chegou a este ponto da reflexão, talvez esteja dizendo para si que este é o modelo esperado de todo cidadão. 

    Nossa formação cristã talvez nos impeça de percebermos que há uma distância saudável entre nós e o outro. Talvez nos diga também que é obrigação do outro cuidar de nós. 

    Mas na base das referências cristãs reside a diretriz "Amar ao próximo como a si", que talvez tenhamos esquecido ou interpretado equivocadamente com o passar do tempo.

    Se não cuidamos de nós mesmos, se não nos amamos, como podemos cuidar e amar o outro que transita pela vida conosco?

    Há uma linha muito sutil entre cuidar de si e ser egoísta, da mesma forma que é difícil definir com clareza carência pessoal e altruísmo. Talvez algumas ferramentas nos ajudem neste discernimento:

    Há muitas pessoas sofrendo à minha volta?

    Estou sofrendo?

    Espero alguma forma de reconhecimento pelo que faço?

    Como é a saúde física, mental e espiritual de meus ídolos?

    Como é a minha saúde física, mental e espiritual?

    Acredito que avaliarmos com atenção e sinceridade as respostas a estas perguntas pode revelar se estamos sendo capazes de achar pontos de equilíbrio entre cuidar e cuidar-se.