*O amor necessita da postura que encontramos nas palavras de Jesus:*
_“Não me detenhas”._
_Não basta apenas nos fundir com o outro, e sim, precisamos simultaneamente delimitar o nosso espaço._
*Precisamos nos tornar sensíveis para a profunda inacessibilidade do outro e reconhecer o segredo do seu ser.*
_Somente assim o amor respira, permanece lar e não se transforma em prisão._
*362-003*
*feliz 2024*
Sempre que acesso prescrições, fico pensando sobre o que ultrapassa os limites da cognição e dos sentidos humanos. Inevitavelmente acabo questionando não apenas a prescrição, mas também o objeto a ser conquistado ou evitado através da prescrição.
Mas questionar o amor, projetá-lo para além da humanidade é um desafio Hercúleo de filosofia, de espiritualidade e de subjetividade.
A ciência define o amor com certa abrangência e as artes acessam este amor como construção social mutante, que se transforma significativamente conforme as culturas se relacionam ao largo do tempo.
Uma das definições mais incríveis, desafiadoras e abrangente a que tive acesso foi a estabelecida de forma indireta por Jesus.
O claro convite para amar ao próximo como a si, que abrange o perdão, a conciliação, o autoconhecimento e a devoção ao sagrado; convoca-nos a colocar o amor em movimento através das relações e nos dá pistas para tentarmos delinear o amor.
Sendo ação, sentimento e emoção, o ato de amar sugere existir uma potência vigorosa capaz de estabelecer paz e felicidade na sociedade, o amor.
Vemos na obra de Jesus a proposta de autoconhecimento e de autodesenvolvimento através das relações. Os psicanalistas talvez dissessem que a proposta trata de assumir a autonomia e o afeto positivo por mecanismos relacionais projetivos, mecanismos que nos permitem nos reconhecermos através do outro, que serviriam de espelho para nós.
Falamos de bem-estar, prosperidade, progresso e autorrealização através de relações éticas e de cuidado mútuo na vida em sociedade.
Talvez estejamos falando aqui sobre a construção e fortalecimento do sentido pessoal de individualidade, que se dá através das relações sociais.
Reconhecer que o outro não é parte ou extensão de nossa individualidade, conceder ao outro o direito de ser conforme suas próprias crenças e valores, estabelecer critérios relacionais éticos que gerem segurança nas relações sociais, aceitar a necessidade permanente de ajuste destes critérios frente à impermanência da vida. Estes são desafios que podem ocupar nossas mentes e corações enquanto estamos em curso na vida.
Não tenho certeza se seremos capazes de reconhecer os segredos de ser do outro, que é diferente do eu e portador de autonomia. Talvez eu não tenha ferramentas cognitivas para fazê-lo, uma vez que minha história singular me trouxe às habilidades de ser quem sou e de ver o mundo através da lente que sou, mas, se conseguirmos aceitar as necessidades deste outro como expressões válidas de um sujeito caminhando pela vida de forma singular como nós, talvez sejamos capazes de estabelecer um bom local de convivência em que poderemos experimentar a vida através das relações e chamar de lar.
Não acredito, entretanto, que vivamos em prisões. Os contextos sociais construídos, mesmo os mais restritivos, talvez possam ser vistos como a construção excelente que pode ser submetida ao progresso mediante as relações e consequentes afetos.
Acredito que só há prisões se permitimos ser aprisionados. Os aprisionadores e as prisões nascem da impotência de ser autêntico, autônomo e ético nas relações.
Talvez seja através da vivência dos contextos sociais restritivos que nos habilitemos para ver a possibilidade de viver em contextos mais amplos e respeitosos.
O mesmo Jesus que inaugura esta reflexão só libertava o sofredor dos sofrimentos que o próprio sofredor era capaz de identificar. Ele costumava esperar que o sujeito singular expressasse seu desejo de cura e, quando possível, oferecia a intervenção pontual, mas também alertava com o "vai e não peques mais", que o sofrimento tinha uma causa que poderia ser evitada para isentar o sujeito de sofrimentos recorrentes.
Imagino que muitos prisioneiros das doenças tenham voltado a enfermar depois das curas. Me baseio para fazer esta criação, no fato de que Jesus não pontuava com clareza o que havia trazido o adoecimento. Ele apenas revelava o mecanismo de adoecimento e deixava ao recém-curado o desafio de achar a causa.
Como prisioneiros recém-libertos, voltaremos ao aprisionamento enquanto não formos capazes de identificar a causa do aprisionamento e de mudar de atitude. Desta forma, a prisão seria o estado natural, a construção possível para o sujeito singular, enquanto a liberdade temporária seria a sinalização de possibilidades melhores, ainda inacessíveis, mas factíveis no futuro pelos próprios esforços.
O "Meu reino não é deste mundo" de Jesus talvez seja a melhor dica para fazermos esta ponte e para reconhecermos nosso sofrimento como estado possível de construção atual.
Sempre que acesso prescrições, fico pensando sobre o que ultrapassa os limites da cognição e dos sentidos humanos. Inevitavelmente acabo questionando não apenas a prescrição, mas também o objeto a ser conquistado ou evitado através da prescrição.
Mas questionar o amor, projetá-lo para além da humanidade é um desafio Hercúleo de filosofia, de espiritualidade e de subjetividade.