Nenhuma pessoa pode preencher seu coração, se antes você mesmo não aprender a fazer.
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muita paz
Nos vemos como seres incompletos, em falta de algo ou alguém, e isto é, muitas vezes, amedrontador.
Criamos certa lógica de existência em que precisamos ocupar todos os espaços com presenças especiais, quase cinematográficas. Talvez uma mentalidade de que o vazio é tão ruim quanto o erro, o imperfeito e o impreciso.
Há quem fuja do silêncio e do vazio para evitar sentimentos de solidão, há compradores que precisam estar consumindo em todos os tempos livres. Trabalhadores envolvem-se em tarefas suficientes para justificar a falta de tempo para cuidarem de si e de suas famílias.
Palavras como ócio e contemplação ganharam pesos ruins em nossa cultura.
Utilidade e produtividade viraram mantras importantes para existirmos como cidadãos perfeitamente integrados ao mercado.
Acredito que decidimos coletivamente anestesiar nossa humanidade para competirmos com as máquinas que só param para manutenções preventivas e reparos devido à fadiga dos materiais que as constituem.
Realidades instagramáveis impecáveis, vídeos e fotos que apresentam a perfeição, mesmo que precisemos de Inteligências Artificiais para eliminar as impurezas e imperfeições inevitáveis, ganharam lugar de destaque.
Talvez estejamos vivendo a gravação de um filme épico e cada momento vivido esteja sendo visto como um fragmento de uma idealização que será editado e manipulado até conseguirmos a cena perfeita. Como em um set de filmagens, as trilhas sonoras serão adicionadas posteriormente e somente então haverá uma grande estreia e a possibilidade de contemplação da obra por todos, inclusive por seus próprios autores.
É possível que tenhamos nos afastado da vida em tempo presente para vivermos futuros e simulações possíveis. Roteiros idealizados para nos sentirmos perfeitos e plenos, embora artificiais e distantes da natural vulnerabilidade humana, que carrega em si a possibilidade do erro, mas também a beleza das descobertas e inovações.
Neste campo, só temos valor conforme o retorno externo após o lançamento. O público aclamará os grandes vitoriosos, esquecerá os medianos e destruirá os medíocres. Nossas vidas passam a valer como as obras cinematográficas, pelo tamanho da influência que criamos e do retorno trazido pelo reconhecimento desta influência.
Acredito que seja neste contexto que podemos olhar de forma diferenciada para o convite à reflexão do dia.
Nos sentimos vazios e temos uma necessidade urgente de nos percebermos preenchidos. Entretanto, temos atribuído ao outro a função de nos preencher. Criamos uma cultura de existência coletiva em que só valemos algo se formos capazes de interagir socialmente, gerando reconhecimento coletivo por nós a partir de nossa capacidade de agradar ao desejo do outro e os acordos sociais.
Entretanto, para ser especial, é preciso existir um plano de fundo sobre o qual algo se destaca. Acredito que não seja possível preencher todos os vazios desta forma. Talvez vivamos um contexto de escassez afetiva criado pela nossa própria cultura de evidência e destaque.
Os desdobramentos desta cultura?
Excelência, inovação, novos conhecimentos, revoluções estéticas e progresso. Mas também baixa autoestima, solidão, depressão, raiva, polarização, competição exacerbada e violência.
Se não formos capazes de definir os espaços em nossos corações que precisam ser preenchidos, se não pudermos delimitar áreas que poderão ficar vazias e, principalmente, se não nos autorizarmos a sermos nós mesmos os geradores deste preenchimento, nos aproximaremos cada vez mais das máquinas e nos sentiremos cada vez menos humanos.
Acredito que a convivência com o outro pode nos trazer encantos e subsídios para refletirmos sobre quem somos, mas ela não pode ser a fonte geradora de significado para quem somos. Por isso, defendo a ideia de que esperar que alguém nos preencha é criar dores, solidões e vazios impreenchíveis.
A solução? Viver o tempo presente, resgatar a diversidade e a imperfeição e celebrar nossas construções, mesmo quando não atenderem nossas idealizações.
Se estivermos em paz conosco, com as idealizações que geramos e com as criações que fazemos, é provável que possamos conviver com vazios, celebrando-os ao invés de lamentá-los e temê-los.
Vidas contemplativas e ócio, em contraposição ao utilitarismo e ao produtivismo, talvez nos habilite a gerar um diálogo importante para a redução do sofrimento humano pós-moderno.
Nos vemos como seres incompletos, em falta de algo ou alguém, e isto é, muitas vezes, amedrontador.
Criamos certa lógica de existência em que precisamos ocupar todos os espaços com presenças especiais, quase cinematográficas. Talvez uma mentalidade de que o vazio é tão ruim quanto o erro, o imperfeito e o impreciso.